Texto que minha tia fez sobre mim.
"O dia em que ela nasceu parecia o primeiro de uma era. Dois do mês sete não era o primeiro nem seria o último no calendário. Mas soava como o movimento de uma música que se inicia. Um mundo que começava ali. Pelo menos, um mundo que se mede não pelo diâmetro do planeta, mas pelo pulsar do sangue. Um espelho da própria vida, uma mulher em início.
Minha herdeira não era direta, era oblíqua. Uma genealogia que cruza e desce – a filha da irmã. Mas era o primogênito e único sangue feminino que surgia na minha existência sem partos. Não era direto tampouco o tempo em que a vi crescer. A vida deu voltas, às vezes próximas, outras, longínquas. A vida paulistana de relações atabalhoadas, cheia de compromissos e vazia de visitas e conversas. Um deixar para depois que eu acabar um trabalho que não acaba nunca. Cada vez que a encontrava, já notava os centímetros a mais na estatura e nos cabelos. Logo, estes centímetros se acrescentavam na circunferência dos quadris e do peito.
Até que ela virou namoradinha, como foi esta sua tia que nunca gostou de ficar só. Tornou-se estudante numa grande universidade, época em que se dividia em uma garota meio hippie-alternativa, meio certinha-tradicional, como já foi a tia. Um culto à filosofia “paz e amor careta”.
Escolheu uma profissão da área de humanas, baseada em falar e escrever, quase como a tia. Com direito ao trabalho, ainda enquanto estudante, que possibilitava desfrutar de curta remuneração a garantir um nível mínimo de independência em sua vida diária. Caminho já percorrido pela tia há poucas décadas.
Esta tia foi palmeirense que namorava corintiano. Ela é corintiana que namora palmeirense. Do contra, como a tia.
Com gosto pela dança, pelo canto, por um bom papo, como a mãe. Idealista como o pai. Irrequieta como o irmão.
Enfim, chega a hora de cortar um pouco mais o cordão umbilical e sair pelo mundo. Em poucos dias, cruzará sozinha o equador rumo à vida no hemisfério norte, onde verá o outro lado da Terra. A menina que cresceu será, cada vez mais, como ela própria. Sua casa para limpar, a comida para fazer, a roupa para lavar e passar, os compromissos para organizar, as emoções para vivenciar. Tudo será como ela quiser e fizer.
Aqui ficará a mãe, o pai, o irmão, a tia. Como outro movimento na música da vida, um sangue novo correrá nas veias de cada um deles neste renascimento. Lá, em outras terras, ela carregará cada vez mais em seu coração todos eles e todos os elos, quanto mais ela própria for."
Maria Cristina Bonnafé
São Paulo, 13/01/2008
segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
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