sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

3 quilômetros de caminhada

3 quilômetros de caminhada: um e meio pra ir, um e meio pra voltar. Era só um pulo até ali pra comprar o novo disjuntor, coisinha de nada. Mas desta vez ela resolveu andar de um jeito diferente. Foi sem pressa, disposta a enxergar o caminho.

A parede de vidro da lotérica devolveu-lhe a consciência do corpo. Pernas firmes, braços morenos, o que ela sentia era prazer, mas durou pouco. O fim se anunciou duas quadras à frente: "Lar de Idosos Vivência Feliz". O nome não poderia ser mais irônico e cruel. Separados da vida por um muro, nenhum deles olhava pra fora. Eram mais ou menos dez os senhorzinhos atados a cadeiras de rodas que pareciam flertar com o nada. Pensou: "Daqui a menos de 50 anos meu corpo estará cansado como os deles e passarei a ter músculos, articulações, nervos e órgãos que jamais gritaram sua presença."

Do outro lado da avenida, mais velhos - e jovens menos pacientes que ela. O casal de alianças gastas vai a passos lentos, motivo suficiente para três ou quatro bufadas e as mais displicentes formas de ultrapassagem. Andar devagar na avenida Jabaquara terça-feira às 10 da manhã é um insulto. Mas de que outro jeito poderíamos perceber essas pessoas no fim da vida, equilibrando-se sobre os pontos de ônibus, curvadas, nas filas das farmácias populares com uma longa lista de remédios nas mãos?

Entrou na loja, comprou o disjuntor e voltou. Mais um quilômetro e meio pela frente.

Na altura do metrô Saúde, ela vê pai e filho saírem da estação. O menino levado pela mão entorta a cabeça pra trás e enxerga alguém no chão enquanto o pai segue seu rumo, sem notar o barbudo de pés sujos pra fora do cobertor:
-  Pai, o homem morreu.
Ela bem que se esforçou pra ouvir a resposta, mas não conseguiu.

Ainda estava absorta no que acabara de presenciar, quando foi abordada por um rapaz de longos dreadlocks:
- Você parou! Acho que não gostam dos meus dreads.
E apresentou-lhe uma exposição de conchas, a começar pela maior:
- Escuta esse som. É anti-estresse, o som do mar.
Ela lhe devolveu o sorriso, ele continuou:
- Quer a verdade ou a mentira?
- A verdade
- Tenho problemas com álcool. Me ajuda? Tô vendendo essa concha por 12 reais.
O sorriso não se desfez:
- Não tenho.
- Qualquer moeda...
- Não tenho nada. Só parei pra conversar com você.
- Obrigado pela sua elegância.

E selaram o encontro com um abraço amigo.