terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O drama dos sisos

Escrevo com uma dor latente do lado direito da boca. Faz menos de 24 horas que extrai dois sisos, esses pedaços de osso inconvenientemente enraizados nos seres para quem a evolução ainda não chegou.

Por quase 10 anos posterguei a batalha. No ano retrasado dei início a ela ao tirar uma radiografia panorâmica, que mostrou dentes inclusos: os de cima na vertical e os de baixo completamente deitados. Mostrei à minha dentista de confiança, Miriam. Ela não fez uma cara boa e indicou uma colega especialista em extrações difíceis. A visita ao novo consultório me deixou apavorada. Marina disse que se eu não tirasse os problemáticos terceiros molares poderia ter problemas futuros, mas não foi isso o que me assustou. Quase todos os que buscam informação sobre os sisos são orientados a tirá-los. O que me deixou preocupada foi a apontada proximidade de um nervo com as raízes dos meus dentes inferiores. Um toque bastaria para me provocar uma parestesia, que é a perda provisória ou definitiva da sensibilidade de parte do lábio ou da língua. A probabilidade disso acontecer era de cerca de 10%, segundo ela. Resultado: adiei a cirurgia por mais um ano.

No fim de 2011, em uma consulta de rotina com a Dra. Miriam, resolvi não adiar mais. Diante da minha resistência, Miriam disse que ela mesma faria a cirurgia. Me passou um antibiótico para tomar na véspera e assegurou que eu poderia voltar a trabalhar no dia 1º de fevereiro, dois dias depois da cirurgia. Fiquei mais tranquila e tomei coragem.

Não imaginava, porém, que viveria uma saga. Ontem, quando cheguei ao consultório e logo em seguida tomei a anestesia (Nada de comprimidinho. É injeção mesmo - várias picadas na gengiva), senti que havia uma gravidade maior do que a do ar nos olhos da doutora e de sua assistente. Miriam me deu três comprimidos e passei vergonha. Só consegui levar o copinho de plástico à minha boca com muita dificuldade - eu tremia.

Começaram pela extração do dente mais fácil, o de cima. Miriam disse que a anestesia não me deixaria sentir tanta dor, mas que puxões seriam inevitáveis. Não sei se foi efeito da anestesia ou placebo, mas estava mais relaxada. O relógio marcava 9h30. Perguntei quanto tempo ia demorar. "1 hora e meia, ela disse".

Mas bastaram menos de 2o minutos para eu ver o siso superior sair enorme e inteirinho, deixando um enorme rombo na minha boca. Sem o grandalhão que me acompanhava desde que tomei juízo, me senti banguela. "Já?", perguntei feliz. "Já. Mas o debaixo vai ser mais difícil", respondeu Cláudia, a assistente. "Você vai ter que nos ajudar abrindo bem a boca."

Obviamente fiquei de olhos fechados, mas não resistia a dar uma espiadinha vez ou outra. Via a mangueira do sugador cirúrgico tingida de vermelho, os olhos puxados de Cláudia e os olhos redondos de Miriam concentrados. Apesar dos trancos, eu estava bem. A conversa das duas não tinha nava a ver com o que estavam fazendo, um indício de que tudo corria na mais perfeirta normalidade. Mas isso mudou quando elas concluíram que seria impossível retirar o dente inteiro. "Me passa a broca."

Começou a tortura. Por baixo do meu avental, contraía as mãos no meio das pernas. Quatro mãos e três aparelhos dentro da minha boca. Comecei a rezar um Pai Nosso, mas me perdi no automatismo e tive que recomeçar. Repeti cinco vezes até que finalmente consegui me focar no que estava mentalizando. Também repetia o mantra: "Sai. Este corpo não te pertence." A assistente segurava firme as minhas mandíbulas. Estava sendo a protagonista passiva de uma operação de guerra. Depois de muitas remexidas, saiu o primeiro teco de dente, que foi direto para a garganta. Quase engasguei. Depois desse, não senti mais nenhum pedaço, o que me fez pensar: "Será que ele não vai sair?". Precisava de uma resposta. As duas estavam em silêncio. Reuni forças para me fazer clara mesmo com aquele monte de mãos e aços dentro da boca: "Tá saindo?" "Tá difícil, mas vai sair. ". Eu duvidei não sem razão. Poucos minutos depois, o silêncio deu lugar a uma conversa tensa. "E se a gente tentar por aqui?" "Por aqui não dá." Vamos usar o fórceps." "Vamos ter que abrir mais". Perdi a conta de quantas vezes acionaram a broca.

11 horas, nada. 11 e meia, nada. As duas começaram a transpirar. Ouvi a respiração de Cláudia tornando-se cada vez mais ofegante. Já imaginava uma ambulância vindo me resgatar, até que Miriam soltou um suspiro e falou: "Eliane, está muito difícil. O risco de você ter uma parestesia é muito grande." Aí não teve como manter a calma. Eu estava com "a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar" e ela me fala uma coisa dessas? Comecei a chorar. Miriam pediu para eu me tranquilizar e, com muito esforço, consegui. Respirei fundo e resisti à dor, que já se estendia pela garganta, sem emitir sons. Poucos minutos depois, voilà, uma raiz e depois outras duas. Ufa, que alívio. Não sei qual foi maior, o meu ou o delas. Após dar sete pontos na gengiva, Miriam me mostrou o enorme dente em pedaços de todos os tamanhos. Estilhaços, pequenos cones e cubos e três raízes gigantes.

Mas o sufoco não tinha passado por completo. Miriam alertou para o risco da paresteria: "A chance de ter é maior do que a de não ter. Pelo menos sabemos que a dormência não será definitiva porque o nervo não se rompeu." A agonia se estenderia até as três da tarde, hora em que passaria o efeito da anestesia. Às duas e quarenta voltei a sentir minha boca. Perfeita. Chorei de alegria e agradeci a Deus.

Hoje, dia seguinte à cirurgia, a dor está bem menor e eu já consigo me alimentar bem, mas continuarei em repouso até quinta-feira. Dra. Miriam ligou e ficou feliz em receber as boas notícias. Venci parte da batalha. Ao escovar os dentes nesta manhã, aproveitei para esfregar com força os de trás do lado esquerdo. Daqui a seis meses serão os próximos combatentes.