Durante 25 anos fui vizinha de uma macumbeira. Era ela quem ficava comigo nos raros momentos em que minha mãe se ausentava, quando eu tinha por volta de 5,6 anos. As imagens do primeiro dia em que entrei naquela casa são fortes até hoje: no fogão havia uma camada espessa de gordura. A sala era espaçosa e tinha poucos móveis. No quarto, dois potes de pó de arroz com um cheiro estranho – hoje chego à conclusão de que provavelmente estavam vencidos há muitos anos. O som do rádio AM era ensurdecedor. Uma voz grossa e dramática falava sobre tragédias. Eu estava em um filme de terror.
Fora da casa, ao lado da cozinha, havia uma portinha cinza de madeira. Em um momento de descuido, Ivanilde me deixou sozinha diante desse outro mundo que eu tinha curiosidade de descobrir: o dos despachos. Sabia que a macumba estava ali atrás. Foi difícil abrir o trinco, mas em cinco minutos já estavam todos diante de mim: uma estátua de quase um metro de um sujeito negro vestido de branco – depois descobri o nome, seu Zé – pratos fundos de cerâmica com farofa, frango e papéis afogados com fragmentos de palavras que não conseguia identificar, uma dúzia de velas e um cheiro de pinga de dar nó no estômago. Fiquei paralisada. Tinha a impressão de que aquilo não era bom. Foi quando fui surpreendida pela mão de Ivanilde na minha nuca: “Sai daí, menina!”
Fiquei mais de um mês me negando a voltar àquela casa, mas Ivanilde era querida por minha mãe, tratada como amiga e como personagem folclórico do nosso bairro, o Jardim Consórcio, que fica na zona sul de São Paulo. Acabei convencida a voltar – o medo do que era diferente acabou tendo um efeito muito interessante em mim, efeito que me acompanha até hoje: uma forte atração que vence a pitada de repulsa. Voltei disposta a encarar o Seu Zé mais uma vez. E foi o que fiz, quando Ivanilde me deixou sozinha em casa. Fui além: Peguei uma daquelas velas para mim, disposta a fazer a minha própria macumba. Os papéis não tive coragem de ler – aí ia ser demais.
No dia seguinte, convoquei a melhor amiga para fazer o despacho comigo. O lugar escolhido foi a praça em frente à minha casa, que tem forma de triângulo e três seringueiras grandes e centenárias alinhadas. A última delas, no fundo da praça, era a que chamávamos de Deus, em uma alusão ao filme “Lagoa Azul”, em que Brooke Shields e seu par rezavam ao lado de uma árvore. Não descuidei do figurino: eu vestia um short branco largo que peguei emprestado do meu irmão e uma camiseta do pica-pau, também branca, como mandava um protocolo o imaginário. Escolhemos o dia certo para fazer a oferenda ao seu Zé: sábado, dia seguinte à sexta-feira de uma feira que ocupava toda a rua à esquerda da praça. Os restos de comida eram parte importante o ritual: cenoura, beterraba, batata e abóbora. Pedaços abandonados de legumes passados eram preciosos para nós. Tratamos de reunir nossas panelinhas e talheres de plástico para fazer uma salada cósmica. Foi bem difícil cortar os legumes em pequenos pedaços com aquelas facas moles. Colocamos a mistura em pratinhos e enfeitamos com flores brancas. E o grand finale: acendemos a vela. Me senti a própria mãe de santo mirim. Ficamos um tempo em silêncio. Impregnadas de cheiro de vela queimada, começamos a cantar: “Hoje, quero paz no meu coração./ Quem quiser ter um amigo que me dê a mão./ O tempo passa, e com ele caminhamos todos juntos, sem parar./ Nossos passos pelo chão vão ficar/ Marcas do que se foi/ Sonhos que vamos ter/ Porque todo dia nasce novo em cada amanhecer./"
E senti que aquilo era bom.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
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