Sabia que eu
tinha um defeito.
Sou o mais
novo de dez irmãos e talvez por isso eles me achem mimado: “Olha lá o filhinho
da mamãe”. Diziam que eu era de exagerar. Sempre foi difícil me fazer ouvir naquela
barulheira, mas eu falava: “Tem alguma coisa errada comigo, só não sei o que é.”
Cada um
vinha com uma receita: “Você precisa parar de comer porcaria”. “Vai andar, seu
preguiçoso”. “Não adianta ficar aí estatelado achando que vai melhorar. ” Eu
seguia, juro que seguia as orientações da minha família, ainda assim não me
sentia bem. Havia um descompasso, uma inadequação. Não sentia o mesmo que eles,
às vezes não sentia nada. Vai ver eu tinha problema de cabeça. Tive a oportunidade
de me casar, de trabalhar, de ter filhos. Não quis nada. Passava os dias olhando
o movimento e me sentindo fora da cena. Eu era um zé ninguém.
Os dias se
passavam mais ou menos iguais até que numa manhã acordei num lugar diferente do
que eu dormi. Mal conseguia abrir os olhos. A luz branca ofuscava meus pensamentos,
como num sonho. A verdade me dilacerou. O meu problema era o coração. Sempre foi
ele. Não existiu alívio nem alegria, apenas a imagem de um peito aberto numa sala
fria e pessoas ao meu redor.
Eu não era
como os meus 9 irmãos, mas sabia que a partir dali meus futuros sobrinhos e
grande parte dos porcos das próximas gerações teriam esse mesmo fim. A sala fria,
o coração vazio.
Me
arrancaram o que já não me servia. Fizeram-me um favor. O coração nasceu comigo,
mas ele nunca me pertenceu. O destino dele era o peito de um homem.
Tive uma morte
serena. Estranhamente foi minha parte mais estrangeira a que sobreviveu e nela
eu ainda vivo. Meu coração bate, ele bate forte, mora em um outro lugar. Recebe
agora um sangue parecido com o meu. Sim, nós somos bem parecidos com os seres
humanos por dentro.
Na sala de
cirurgia o ar está condensado, o tempo parece suspenso. Mais uma vez a profusão
de jalecos branco. Os médicos demoram a comemorar. Eu não escuto nada, continuo
sem sentir. Tenho medo de que esse corpo me expulse. Não quero mais ser
rejeitado na vida.