quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O coração de um porco bate dentro do peito de um homem


Sabia que eu tinha um defeito.

Sou o mais novo de dez irmãos e talvez por isso eles me achem mimado: “Olha lá o filhinho da mamãe”. Diziam que eu era de exagerar. Sempre foi difícil me fazer ouvir naquela barulheira, mas eu falava: “Tem alguma coisa errada comigo, só não sei o que é.”

Cada um vinha com uma receita: “Você precisa parar de comer porcaria”. “Vai andar, seu preguiçoso”. “Não adianta ficar aí estatelado achando que vai melhorar. ” Eu seguia, juro que seguia as orientações da minha família, ainda assim não me sentia bem. Havia um descompasso, uma inadequação. Não sentia o mesmo que eles, às vezes não sentia nada. Vai ver eu tinha problema de cabeça. Tive a oportunidade de me casar, de trabalhar, de ter filhos. Não quis nada. Passava os dias olhando o movimento e me sentindo fora da cena. Eu era um zé ninguém.

Os dias se passavam mais ou menos iguais até que numa manhã acordei num lugar diferente do que eu dormi. Mal conseguia abrir os olhos. A luz branca ofuscava meus pensamentos, como num sonho. A verdade me dilacerou. O meu problema era o coração. Sempre foi ele. Não existiu alívio nem alegria, apenas a imagem de um peito aberto numa sala fria e pessoas ao meu redor.

Eu não era como os meus 9 irmãos, mas sabia que a partir dali meus futuros sobrinhos e grande parte dos porcos das próximas gerações teriam esse mesmo fim. A sala fria, o coração vazio.

Me arrancaram o que já não me servia. Fizeram-me um favor. O coração nasceu comigo, mas ele nunca me pertenceu. O destino dele era o peito de um homem.

Tive uma morte serena. Estranhamente foi minha parte mais estrangeira a que sobreviveu e nela eu ainda vivo. Meu coração bate, ele bate forte, mora em um outro lugar. Recebe agora um sangue parecido com o meu. Sim, nós somos bem parecidos com os seres humanos por dentro.

Na sala de cirurgia o ar está condensado, o tempo parece suspenso. Mais uma vez a profusão de jalecos branco. Os médicos demoram a comemorar. Eu não escuto nada, continuo sem sentir. Tenho medo de que esse corpo me expulse. Não quero mais ser rejeitado na vida.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

3 quilômetros de caminhada

3 quilômetros de caminhada: um e meio pra ir, um e meio pra voltar. Era só um pulo até ali pra comprar o novo disjuntor, coisinha de nada. Mas desta vez ela resolveu andar de um jeito diferente. Foi sem pressa, disposta a enxergar o caminho.

A parede de vidro da lotérica devolveu-lhe a consciência do corpo. Pernas firmes, braços morenos, o que ela sentia era prazer, mas durou pouco. O fim se anunciou duas quadras à frente: "Lar de Idosos Vivência Feliz". O nome não poderia ser mais irônico e cruel. Separados da vida por um muro, nenhum deles olhava pra fora. Eram mais ou menos dez os senhorzinhos atados a cadeiras de rodas que pareciam flertar com o nada. Pensou: "Daqui a menos de 50 anos meu corpo estará cansado como os deles e passarei a ter músculos, articulações, nervos e órgãos que jamais gritaram sua presença."

Do outro lado da avenida, mais velhos - e jovens menos pacientes que ela. O casal de alianças gastas vai a passos lentos, motivo suficiente para três ou quatro bufadas e as mais displicentes formas de ultrapassagem. Andar devagar na avenida Jabaquara terça-feira às 10 da manhã é um insulto. Mas de que outro jeito poderíamos perceber essas pessoas no fim da vida, equilibrando-se sobre os pontos de ônibus, curvadas, nas filas das farmácias populares com uma longa lista de remédios nas mãos?

Entrou na loja, comprou o disjuntor e voltou. Mais um quilômetro e meio pela frente.

Na altura do metrô Saúde, ela vê pai e filho saírem da estação. O menino levado pela mão entorta a cabeça pra trás e enxerga alguém no chão enquanto o pai segue seu rumo, sem notar o barbudo de pés sujos pra fora do cobertor:
-  Pai, o homem morreu.
Ela bem que se esforçou pra ouvir a resposta, mas não conseguiu.

Ainda estava absorta no que acabara de presenciar, quando foi abordada por um rapaz de longos dreadlocks:
- Você parou! Acho que não gostam dos meus dreads.
E apresentou-lhe uma exposição de conchas, a começar pela maior:
- Escuta esse som. É anti-estresse, o som do mar.
Ela lhe devolveu o sorriso, ele continuou:
- Quer a verdade ou a mentira?
- A verdade
- Tenho problemas com álcool. Me ajuda? Tô vendendo essa concha por 12 reais.
O sorriso não se desfez:
- Não tenho.
- Qualquer moeda...
- Não tenho nada. Só parei pra conversar com você.
- Obrigado pela sua elegância.

E selaram o encontro com um abraço amigo.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Inverno em Porto Alegre


Ela entra de casaco vermelho cereja, saia comprida, sapato preto e meia preta. Passa por nós resoluta, cabelo preso no coque meio solto. Escolhe a mesa da direita, próxima à calçada, sempre às 7 horas.

Vem trazendo um café a passos elegantes. Da bolsa, saca o maço de cigarros. Acende o primeiro e traga, tombando a cabeça e puxando fundo a fumaça. Solta tudo de uma vez, pelo nariz e pela boca. Desenha oitos no cinzeiro com as cinzas do cigarro quase inteiro que acabou de apagar. Em seguida, puxa o café como puxa o cigarro, e incomoda. Dois cachimbos de crack.

Os que estão de passagem olham com espanto, mas ela não os nota, ensimesmada até o infinito. Pega mais um cigarro, fuma, apaga e desenha. E assim vai repetindo o ritual, intercalando longas e intensas tragadas de cigarro e café, cigarro e café, cigarro e café, cigarro e café, até que o café termina - e o maço acaba.

Levanta num salto e atravessa a rua sem ver.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

O amor

O amor é a promessa de futuro
No tempo da delicadeza
Não precisa se consumar para existir
A vida começa e acaba ali

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Dia de macumba

Durante 25 anos fui vizinha de uma macumbeira. Era ela quem ficava comigo nos raros momentos em que minha mãe se ausentava, quando eu tinha por volta de 5,6 anos. As imagens do primeiro dia em que entrei naquela casa são fortes até hoje: no fogão havia uma camada espessa de gordura. A sala era espaçosa e tinha poucos móveis. No quarto, dois potes de pó de arroz com um cheiro estranho – hoje chego à conclusão de que provavelmente estavam vencidos há muitos anos. O som do rádio AM era ensurdecedor. Uma voz grossa e dramática falava sobre tragédias. Eu estava em um filme de terror.

Fora da casa, ao lado da cozinha, havia uma portinha cinza de madeira. Em um momento de descuido, Ivanilde me deixou sozinha diante desse outro mundo que eu tinha curiosidade de descobrir: o dos despachos. Sabia que a macumba estava ali atrás. Foi difícil abrir o trinco, mas em cinco minutos já estavam todos diante de mim: uma estátua de quase um metro de um sujeito negro vestido de branco – depois descobri o nome, seu Zé – pratos fundos de cerâmica com farofa, frango e papéis afogados com fragmentos de palavras que não conseguia identificar, uma dúzia de velas e um cheiro de pinga de dar nó no estômago. Fiquei paralisada. Tinha a impressão de que aquilo não era bom. Foi quando fui surpreendida pela mão de Ivanilde na minha nuca: “Sai daí, menina!”

Fiquei mais de um mês me negando a voltar àquela casa, mas Ivanilde era querida por minha mãe, tratada como amiga e como personagem folclórico do nosso bairro, o Jardim Consórcio, que fica na zona sul de São Paulo. Acabei convencida a voltar – o medo do que era diferente acabou tendo um efeito muito interessante em mim, efeito que me acompanha até hoje: uma forte atração que vence a pitada de repulsa. Voltei disposta a encarar o Seu Zé mais uma vez. E foi o que fiz, quando Ivanilde me deixou sozinha em casa. Fui além: Peguei uma daquelas velas para mim, disposta a fazer a minha própria macumba. Os papéis não tive coragem de ler – aí ia ser demais.

No dia seguinte, convoquei a melhor amiga para fazer o despacho comigo. O lugar escolhido foi a praça em frente à minha casa, que tem forma de triângulo e três seringueiras grandes e centenárias alinhadas. A última delas, no fundo da praça, era a que chamávamos de Deus, em uma alusão ao filme “Lagoa Azul”, em que Brooke Shields e seu par rezavam ao lado de uma árvore. Não descuidei do figurino: eu vestia um short branco largo que peguei emprestado do meu irmão e uma camiseta do pica-pau, também branca, como mandava um protocolo o imaginário. Escolhemos o dia certo para fazer a oferenda ao seu Zé: sábado, dia seguinte à sexta-feira de uma feira que ocupava toda a rua à esquerda da praça. Os restos de comida eram parte importante o ritual: cenoura, beterraba, batata e abóbora. Pedaços abandonados de legumes passados eram preciosos para nós. Tratamos de reunir nossas panelinhas e talheres de plástico para fazer uma salada cósmica. Foi bem difícil cortar os legumes em pequenos pedaços com aquelas facas moles. Colocamos a mistura em pratinhos e enfeitamos com flores brancas. E o grand finale: acendemos a vela. Me senti a própria mãe de santo mirim. Ficamos um tempo em silêncio. Impregnadas de cheiro de vela queimada, começamos a cantar: “Hoje, quero paz no meu coração./ Quem quiser ter um amigo que me dê a mão./ O tempo passa, e com ele caminhamos todos juntos, sem parar./ Nossos passos pelo chão vão ficar/ Marcas do que se foi/ Sonhos que vamos ter/ Porque todo dia nasce novo em cada amanhecer./"

E senti que aquilo era bom.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O drama dos sisos

Escrevo com uma dor latente do lado direito da boca. Faz menos de 24 horas que extrai dois sisos, esses pedaços de osso inconvenientemente enraizados nos seres para quem a evolução ainda não chegou.

Por quase 10 anos posterguei a batalha. No ano retrasado dei início a ela ao tirar uma radiografia panorâmica, que mostrou dentes inclusos: os de cima na vertical e os de baixo completamente deitados. Mostrei à minha dentista de confiança, Miriam. Ela não fez uma cara boa e indicou uma colega especialista em extrações difíceis. A visita ao novo consultório me deixou apavorada. Marina disse que se eu não tirasse os problemáticos terceiros molares poderia ter problemas futuros, mas não foi isso o que me assustou. Quase todos os que buscam informação sobre os sisos são orientados a tirá-los. O que me deixou preocupada foi a apontada proximidade de um nervo com as raízes dos meus dentes inferiores. Um toque bastaria para me provocar uma parestesia, que é a perda provisória ou definitiva da sensibilidade de parte do lábio ou da língua. A probabilidade disso acontecer era de cerca de 10%, segundo ela. Resultado: adiei a cirurgia por mais um ano.

No fim de 2011, em uma consulta de rotina com a Dra. Miriam, resolvi não adiar mais. Diante da minha resistência, Miriam disse que ela mesma faria a cirurgia. Me passou um antibiótico para tomar na véspera e assegurou que eu poderia voltar a trabalhar no dia 1º de fevereiro, dois dias depois da cirurgia. Fiquei mais tranquila e tomei coragem.

Não imaginava, porém, que viveria uma saga. Ontem, quando cheguei ao consultório e logo em seguida tomei a anestesia (Nada de comprimidinho. É injeção mesmo - várias picadas na gengiva), senti que havia uma gravidade maior do que a do ar nos olhos da doutora e de sua assistente. Miriam me deu três comprimidos e passei vergonha. Só consegui levar o copinho de plástico à minha boca com muita dificuldade - eu tremia.

Começaram pela extração do dente mais fácil, o de cima. Miriam disse que a anestesia não me deixaria sentir tanta dor, mas que puxões seriam inevitáveis. Não sei se foi efeito da anestesia ou placebo, mas estava mais relaxada. O relógio marcava 9h30. Perguntei quanto tempo ia demorar. "1 hora e meia, ela disse".

Mas bastaram menos de 2o minutos para eu ver o siso superior sair enorme e inteirinho, deixando um enorme rombo na minha boca. Sem o grandalhão que me acompanhava desde que tomei juízo, me senti banguela. "Já?", perguntei feliz. "Já. Mas o debaixo vai ser mais difícil", respondeu Cláudia, a assistente. "Você vai ter que nos ajudar abrindo bem a boca."

Obviamente fiquei de olhos fechados, mas não resistia a dar uma espiadinha vez ou outra. Via a mangueira do sugador cirúrgico tingida de vermelho, os olhos puxados de Cláudia e os olhos redondos de Miriam concentrados. Apesar dos trancos, eu estava bem. A conversa das duas não tinha nava a ver com o que estavam fazendo, um indício de que tudo corria na mais perfeirta normalidade. Mas isso mudou quando elas concluíram que seria impossível retirar o dente inteiro. "Me passa a broca."

Começou a tortura. Por baixo do meu avental, contraía as mãos no meio das pernas. Quatro mãos e três aparelhos dentro da minha boca. Comecei a rezar um Pai Nosso, mas me perdi no automatismo e tive que recomeçar. Repeti cinco vezes até que finalmente consegui me focar no que estava mentalizando. Também repetia o mantra: "Sai. Este corpo não te pertence." A assistente segurava firme as minhas mandíbulas. Estava sendo a protagonista passiva de uma operação de guerra. Depois de muitas remexidas, saiu o primeiro teco de dente, que foi direto para a garganta. Quase engasguei. Depois desse, não senti mais nenhum pedaço, o que me fez pensar: "Será que ele não vai sair?". Precisava de uma resposta. As duas estavam em silêncio. Reuni forças para me fazer clara mesmo com aquele monte de mãos e aços dentro da boca: "Tá saindo?" "Tá difícil, mas vai sair. ". Eu duvidei não sem razão. Poucos minutos depois, o silêncio deu lugar a uma conversa tensa. "E se a gente tentar por aqui?" "Por aqui não dá." Vamos usar o fórceps." "Vamos ter que abrir mais". Perdi a conta de quantas vezes acionaram a broca.

11 horas, nada. 11 e meia, nada. As duas começaram a transpirar. Ouvi a respiração de Cláudia tornando-se cada vez mais ofegante. Já imaginava uma ambulância vindo me resgatar, até que Miriam soltou um suspiro e falou: "Eliane, está muito difícil. O risco de você ter uma parestesia é muito grande." Aí não teve como manter a calma. Eu estava com "a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar" e ela me fala uma coisa dessas? Comecei a chorar. Miriam pediu para eu me tranquilizar e, com muito esforço, consegui. Respirei fundo e resisti à dor, que já se estendia pela garganta, sem emitir sons. Poucos minutos depois, voilà, uma raiz e depois outras duas. Ufa, que alívio. Não sei qual foi maior, o meu ou o delas. Após dar sete pontos na gengiva, Miriam me mostrou o enorme dente em pedaços de todos os tamanhos. Estilhaços, pequenos cones e cubos e três raízes gigantes.

Mas o sufoco não tinha passado por completo. Miriam alertou para o risco da paresteria: "A chance de ter é maior do que a de não ter. Pelo menos sabemos que a dormência não será definitiva porque o nervo não se rompeu." A agonia se estenderia até as três da tarde, hora em que passaria o efeito da anestesia. Às duas e quarenta voltei a sentir minha boca. Perfeita. Chorei de alegria e agradeci a Deus.

Hoje, dia seguinte à cirurgia, a dor está bem menor e eu já consigo me alimentar bem, mas continuarei em repouso até quinta-feira. Dra. Miriam ligou e ficou feliz em receber as boas notícias. Venci parte da batalha. Ao escovar os dentes nesta manhã, aproveitei para esfregar com força os de trás do lado esquerdo. Daqui a seis meses serão os próximos combatentes.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Chuva de prata

As traças se alimentam do avental esquecido na gaveta da cozinha
O silêncio congela as horas em becos escuros.

Quero romper com o que se foi
Essa não é minha letra
A poeira e o mofo insistem em azedar o frescor dos dias.

O passado é um disco de um tempo que não me pertence
Produzido no meu tempo presente:
Invasão.

A surpresa virou raiva
O disco dilacerado, chuva de prata.
Mesmo no lixo, as farpas continuam cravadas no coração.

O dia amanheceu triste e cedo demais.