Escrevo com uma dor latente do lado direito da boca. Faz menos de 24 horas que extrai dois sisos, esses pedaços de osso inconvenientemente enraizados nos seres para quem a evolução ainda não chegou.
Por quase 10 anos posterguei a batalha. No ano retrasado dei início a ela ao tirar uma radiografia panorâmica, que mostrou dentes inclusos: os de cima na vertical e os de baixo completamente deitados. Mostrei à minha dentista de confiança, Miriam. Ela não fez uma cara boa e indicou uma colega especialista em extrações difíceis. A visita ao novo consultório me deixou apavorada. Marina disse que se eu não tirasse os problemáticos terceiros molares poderia ter problemas futuros, mas não foi isso o que me assustou. Quase todos os que buscam informação sobre os sisos são orientados a tirá-los. O que me deixou preocupada foi a apontada proximidade de um nervo com as raízes dos meus dentes inferiores. Um toque bastaria para me provocar uma parestesia, que é a perda provisória ou definitiva da sensibilidade de parte do lábio ou da língua. A probabilidade disso acontecer era de cerca de 10%, segundo ela. Resultado: adiei a cirurgia por mais um ano.
No fim de 2011, em uma consulta de rotina com a Dra. Miriam, resolvi não adiar mais. Diante da minha resistência, Miriam disse que ela mesma faria a cirurgia. Me passou um antibiótico para tomar na véspera e assegurou que eu poderia voltar a trabalhar no dia 1º de fevereiro, dois dias depois da cirurgia. Fiquei mais tranquila e tomei coragem.
Não imaginava, porém, que viveria uma saga. Ontem, quando cheguei ao consultório e logo em seguida tomei a anestesia (Nada de comprimidinho. É injeção mesmo - várias picadas na gengiva), senti que havia uma gravidade maior do que a do ar nos olhos da doutora e de sua assistente. Miriam me deu três comprimidos e passei vergonha. Só consegui levar o copinho de plástico à minha boca com muita dificuldade - eu tremia.
Começaram pela extração do dente mais fácil, o de cima. Miriam disse que a anestesia não me deixaria sentir tanta dor, mas que puxões seriam inevitáveis. Não sei se foi efeito da anestesia ou placebo, mas estava mais relaxada. O relógio marcava 9h30. Perguntei quanto tempo ia demorar. "1 hora e meia, ela disse".
Mas bastaram menos de 2o minutos para eu ver o siso superior sair enorme e inteirinho, deixando um enorme rombo na minha boca. Sem o grandalhão que me acompanhava desde que tomei juízo, me senti banguela. "Já?", perguntei feliz. "Já. Mas o debaixo vai ser mais difícil", respondeu Cláudia, a assistente. "Você vai ter que nos ajudar abrindo bem a boca."
Obviamente fiquei de olhos fechados, mas não resistia a dar uma espiadinha vez ou outra. Via a mangueira do sugador cirúrgico tingida de vermelho, os olhos puxados de Cláudia e os olhos redondos de Miriam concentrados. Apesar dos trancos, eu estava bem. A conversa das duas não tinha nava a ver com o que estavam fazendo, um indício de que tudo corria na mais perfeirta normalidade. Mas isso mudou quando elas concluíram que seria impossível retirar o dente inteiro. "Me passa a broca."
Começou a tortura. Por baixo do meu avental, contraía as mãos no meio das pernas. Quatro mãos e três aparelhos dentro da minha boca. Comecei a rezar um Pai Nosso, mas me perdi no automatismo e tive que recomeçar. Repeti cinco vezes até que finalmente consegui me focar no que estava mentalizando. Também repetia o mantra: "Sai. Este corpo não te pertence." A assistente segurava firme as minhas mandíbulas. Estava sendo a protagonista passiva de uma operação de guerra. Depois de muitas remexidas, saiu o primeiro teco de dente, que foi direto para a garganta. Quase engasguei. Depois desse, não senti mais nenhum pedaço, o que me fez pensar: "Será que ele não vai sair?". Precisava de uma resposta. As duas estavam em silêncio. Reuni forças para me fazer clara mesmo com aquele monte de mãos e aços dentro da boca: "Tá saindo?" "Tá difícil, mas vai sair. ". Eu duvidei não sem razão. Poucos minutos depois, o silêncio deu lugar a uma conversa tensa. "E se a gente tentar por aqui?" "Por aqui não dá." Vamos usar o fórceps." "Vamos ter que abrir mais". Perdi a conta de quantas vezes acionaram a broca.
11 horas, nada. 11 e meia, nada. As duas começaram a transpirar. Ouvi a respiração de Cláudia tornando-se cada vez mais ofegante. Já imaginava uma ambulância vindo me resgatar, até que Miriam soltou um suspiro e falou: "Eliane, está muito difícil. O risco de você ter uma parestesia é muito grande." Aí não teve como manter a calma. Eu estava com "a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar" e ela me fala uma coisa dessas? Comecei a chorar. Miriam pediu para eu me tranquilizar e, com muito esforço, consegui. Respirei fundo e resisti à dor, que já se estendia pela garganta, sem emitir sons. Poucos minutos depois, voilà, uma raiz e depois outras duas. Ufa, que alívio. Não sei qual foi maior, o meu ou o delas. Após dar sete pontos na gengiva, Miriam me mostrou o enorme dente em pedaços de todos os tamanhos. Estilhaços, pequenos cones e cubos e três raízes gigantes.
Mas o sufoco não tinha passado por completo. Miriam alertou para o risco da paresteria: "A chance de ter é maior do que a de não ter. Pelo menos sabemos que a dormência não será definitiva porque o nervo não se rompeu." A agonia se estenderia até as três da tarde, hora em que passaria o efeito da anestesia. Às duas e quarenta voltei a sentir minha boca. Perfeita. Chorei de alegria e agradeci a Deus.
Hoje, dia seguinte à cirurgia, a dor está bem menor e eu já consigo me alimentar bem, mas continuarei em repouso até quinta-feira. Dra. Miriam ligou e ficou feliz em receber as boas notícias. Venci parte da batalha. Ao escovar os dentes nesta manhã, aproveitei para esfregar com força os de trás do lado esquerdo. Daqui a seis meses serão os próximos combatentes.